Quatro diante da morte 46a4h
Publicado em 01 de maio de 2025 Por Jornal Do Dia Se 3y62f
* Andrei Albuquerque
O recente filme de Pedro Almodóvar, ‘O quarto ao lado’ (2024), narra o percurso de Martha, uma jornalista que fazia a cobertura de guerras e conflitos ao redor do mundo, em um processo de cuidados paliativos contra um câncer cervical agressivo e no início da aceitação de sua morte, de sua finitude. A jornalista sofre tendo como cenário a cidade de Nova Iorque, sofrimento que também poderia ser às margens do nosso rio Poxim talvez sem os mesmos recursos de um caro plano de saúde naquela cidade, mas certamente sem um sistema público de saúde que não existe nas terras estadunidenses.
Digno de nota que Martha, na juventude, antes de se tornar uma correspondente de guerra, teve um namorado, pai de sua filha, que voltou da guerra da Vietnã assombrado pelos horrores da guerra, um trauma, um buraco real em sua vida que Fred tentará contornar trabalhando em um hospital e finalmente morrendo em um incêndio de uma casa abandonada à beira de uma estrada ao julgar que devia entrar e prestar socorro às vozes que gritavam somente em sua cabeça. Não havia ninguém naquela casa. Em chamas, Fred teria encontrado uma resolução para os seus fantasmas de guerra e depois Martha ará a vida cobrindo guerras e conflitos.
Quanto ao câncer em estágio terminal, Martha resolve optar pela eutanásia e pede a sua amiga de longa data, chamada Ingrid – uma escritora de autoficção que acabara de publicar um livro sobre a morte – para ir a uma casa de campo e ficar no quarto ao lado fazendo companhia até o momento em que Martha decida tomar uma substância letal que encerrará o seu sofrimento.
Inicialmente, Ingrid reluta tentando incentivar Martha a lutar até o fim, escudada por um discurso de coragem e fruição da vida. A arma de Ingrid é a literatura, a arte, palavras que podem injetar algum sentido perante a incerteza gerada pelo encontro certo com a morte – perante a morte produziremos rituais, discursos, símbolos que preencham o que restará indizível acerca do desaparecimento de um corpo, de um ser. Também a morte não deixar de ter um aspecto metafórico, morremos de várias maneiras ao longo da vida: morremos em términos, na elaboração de lutos. Se nas neuroses a sensação de estar morto em vida pode ser algo sintomático em relação ao desejo e a determinada estagnação existencial, nas psicoses encontramos o delírio de negação da morte, como na síndrome de Cotard, em que delirantemente se crê estar morto em vida como uma forma real de lidar com as questões colocadas pela vida. Portanto, a finitude do ser nunca deixaria de estar em jogo nas ações, nas hesitações, nas transformações da vida, na pressa de decidir, mudar ou simplesmente desistir. No filme, a filha de Martha somente se aproximará após a sua morte e a partir desse ponto poderá se refugiar em uma idealização de sua mãe com quem antes não conseguia estabelecer uma convivência – a morte movimenta os vivos.
Durante a narrativa surge Damian, amigo em comum de Martha e Ingrid, que irá prestar auxílio a Ingrid em relação às possíveis consequências legais que ela poderá enfrentar por apoiar Martha em seu processo pessoal de eutanásia. Em uma cena, veremos um policial que interroga Ingrid, após a morte de sua amiga, representar um discurso religioso e moralista que desumaniza as circunstâncias e as particularidades da escolha de cada pessoa. Damian também é ambientalista que profere palestras sobre as mudanças climáticas e um iminente apocalipse ambiental, diante de uma “morte” coletiva, do fim da civilização como a conhecemos, seguirá se apoiando em um discurso que lhe forneça algum sentido, uma atitude quixotesca diante do caos ambiental promovido por décadas de ação predatória de nações e multinacionais, todavia frente à imprevisibilidade das transformações climáticas é melhor ter um discurso que torne o mal-estar mais ável.
Freud, em “Reflexões para o tempo de guerra e morte”(1915), publicado durante a Primeira Guerra Mundial, escreve sobre a desilusão da guerra e termina citando um ditado em latim que diz: “Se queres ar a vida, prepara-te para morte”.
É possível observar no filme quatro posições diante da morte, a sua inevitabilidade e, sobretudo, como a questão afetará a relação de cada personagem com a vida, mudando a perspectiva sobre o que seria a vida e as ilusões do que seria viver, os semblantes, as aparências dos discursos sobre uma suposta plenitude padronizada da vida, uma espécie de ataraxia superficial vendida em cursos e treinamentos que estaria mais próxima de uma platitude (o que é monótono, uniforme) existencial e distante dos caminhos que a vida pode inesperadamente seguir. Então, Martha, Ingrid, Fred e Damian sustentam os seus discursos, as suas posições, diante da morte cada um a partir do modo que consegue dar e à vida.
* Andrei Albuquerque, psicanalista e psicólogo. Mestre em psicologia social/UFS. Publicou 2 livros, artigos e textos em jornais.