TerapIA 5q429
Publicado em 22 de maio de 2025 Por Jornal Do Dia Se 3q5vp
* Andrei Albuquerque
Se de imediato demonizamos uma ferramenta logo lidamos com ela de modo afetivo por medo e ignorância, porém isso não significa que devamos deixar de ter uma algum impulso ludista contra os avanços sublimes da tecnologia, mas que ainda deixam um resto: a barbárie. O ludismo foi um movimento inglês de trabalhadores contra o uso de máquinas durante a chamada “revolução industrial” no final do século XVIII e meados do XIX na Inglaterra, quebravam máquinas e criticavam as condições precárias de trabalho do operários. Portanto, uma atitude crítica frente ao uso da inteligência artificial (IA) faria alguma resistência a uma ilusão alienante que a apresente mascarando a exploração por Big techs que também capturam nossos dados para vendê-los posteriormente – a economista estadunidense Shoshana Zuboff em seu livro intitulado “A era do capitalismo de vigilância: a luta por um futuro humano na fronteira do poder” trabalha o problema. De fato, a ferramenta deve se consolidar como inovadora, mas sem esquecer o preço a se pagar principalmente pelo trabalhador precarizado que deverá migrar de função como não faz sentido algum se pensar em contratar um datilógrafo em 2025. Se algumas profissões e funções devem ser extintas pela tecnologia, a exploração capitalista deve se moldar rapidamente.
Dos inúmeros usos da ferramenta temos o aumento da procura pelo uso de IA, como o ChatGPT, (recurso conversacional) para realizar um atendimento que se pretende psicoterápico com a máquina. Segundo uma matéria, na revista InfoMoney, intitulada “O divã de silício: por que tanta gente recorre ao ChatGPT para desabafar?” alguns milhões de usuários ao redor do mundo utilizariam a ferramenta para uma espécie de atendimento psicológico e que haveria resultados positivos abrindo um novo nicho de mercado, também a matéria celebra com entusiasmo essa nova forma de explorar a ferramenta para gerar dinheiro sem esquecer de citar o lado sombrio de usuários que relatam “solidão severa” além de um registro de um caso de suicídio após o usuário dialogar com um bot, com uma inteligência artificial. Não chega a surpreender que as pessoas procurem este recurso, pois o o à psicoterapia não é barato e a IA pode ser o único meio de acolhimento que determinada pessoa tenha e e para desabafar o que gera alívio sendo um ganho terapêutico e que ainda pode se tornar o início de uma busca por ajuda especializada. Todavia, a máquina repete padrões de conversação coletados pelo oceano da internet e talvez jamais consiga fazer a escuta da estranheza particular das palavras que marcam a história de cada um e como atravessam o seu corpo. Difícil imaginar que um chatbot supostamente psicoterapêutico possa fazer a escuta de um determinado sujeito que reconheceu que uma coceira específica na ponta de seu nariz tem relação com um conteúdo sexual inconsciente que ou anos recalcado, cifrado, gerando uma satisfação que para a consciência seria aparentemente paradoxal. As palavras ganham um sentido singular em nossa história pessoal e em nosso corpo, logo de que maneira um robô poderia escutar um ser humano sem ter também um corpo? Recomendações protocolares diante de queixas de sofrimento psíquico são facilmente aprendidas por profissionais de saúde e por máquinas, porém adentrar em outras camadas da vida psíquica não é igualmente fácil. Também é inegável que muitas pessoas preferem não mexer em seus conflitos e sintomas – aqui as “recomendações protocolares” encontram onde prosperar sem provocar questionamentos incômodos. A máquina pode reproduzir e “criar” de forma brilhante simulando uma inteligência que tem um corpo, mas não vai ar de uma imitação, um simulacro, do que pulsa de modo singular e estrangeiro em cada ser.
Antes de qualquer ferramenta há o humano e sua inerente defesa diante de sua verdade a favor dos ganhos que a alienação e ignorância conservam. Voltando ao século XVIII, encerro com uma citação da obra humorística de Laurence Sterne, “A vida e as opiniões do cavalheiro Tristram Shandy”: “É uma singular benção dos céus que a natureza tenha formado a mente do homem com a mesma ditosa relutância e resistência ao convencimento observável nos cães velhos, – os quais se recusam ‘a aprender truques novos'”. As máquinas já conseguem simular o comportamento de homens e cães, mas conseguirão sentir o que seria uma “ditosa relutância”?
* Andrei Albuquerque, psicanalista e psicólogo. Mestre em psicologia social/UFS. Publicou 2 livros, artigos e textos em jornais.